«Norwegian Wood», por Haruki Murakami
Aviso: esta opinião contem spoilers!
Norwegian Wood (1987) foi o quinto romance publicado por Haruki Murakami, e aquele que o lançou para o estrelato. O romance tornou-se numa referência literária no Japão, tornando-se de forma viral num dos livros favoritos dos adolescentes e jovens adultos do país. Em 2010, a obra foi adaptada aos grandes ecrãs. O seu título é uma referência à música dos Beatles, homónima, que é referida várias vezes no decurso do enredo.
A história é contada na primeira pessoa por Toru Watanabe, que recorda os seus primeiros anos de universidade, depois de ter saído de casa dos seus pais para a grande Tóquio. Toru era um rapaz de dezoito anos que havia sofrido uma perda grande há pouco tempo. O seu melhor amigo, Kizuki, havia-se suicidado antes de atingir a maioridade, de uma forma completamente imprevisível: uma tarde, depois de disputarem quatro partidas de snooker e de Kizuki ter ganho todas elas, pois segundo o próprio, "não me apetecia perder hoje", o jovem de apenas 17 anos atentou contra a sua vida, acabando por morrer. Esse foi o primeiro encontro de Toru com a morte, que lhe roubou o melhor amigo sem qualquer indício ou justificação. Kizuki não deixou notas, cartas ou explicações. Apenas foi.
«Até à data, concebia a morte como uma realidade independente, separada da vida. É certo que, um dia, no futuro, a morte estenderá os braços para nos envolver. Até lá, porém, estamos livres dela. Para mim, era a verdade absoluta e lógica. A vida está deste lado, a morte do outro. Eu estou deste lado, e não do outro. (...) Naquela noite de maio em que a morte levou Kizuki, aos dezassete anos, levou também uma parte de mim.»
No decurso da narrativa deparamo-nos com o crescimento psicossexual da personagem principal, que nos leva consigo nas suas aventuras sexuais e amorosas. Encontros sexuais casuais à parte, Toru acaba por se apaixonar por duas raparigas que são a face oposta uma da outra: Naoko e Midori.
Naoko, por quem Toru nutre um amor profundo, é a antiga namorada do seu falecido melhor amigo. Naoko é uma personagem complexa, com muitas camadas, que oscila entre a melancolia e o brilho inerente a uma rapariga de sensibilidade excecional. É uma jovem que passou não só pela perda do seu namorado e melhor amigo de sempre, como também pela perda de uma irmã, precisamente através da mesma forma: o suicídio. Foi Naoko, quando andava no 6º ano, quem descobriu o corpo da irmã, que se enforcou no quarto. Ao contar o episódio a Toru, Naoko recorda uma conversa que ouviu na época entre os pais, na qual recordavam um outro suicídio na família, e em que chegavam à triste conclusão de que «deve ser algo hereditário». Profecia autoconfirmatória, ou não, o que é certo é que mesmo com um prolongado retiro e tratamento psiquiátrico, Naoko acaba por também pôr termo à sua vida, com uma inevitabilidade quase poética, mas muito trágica.
Midori, por seu turno, é uma jovem extravagante, alegre e extrovertida, que vive a vida intensamente e com muita intenção. Também a sua história é dura, uma vez que perdeu a sua mãe para uma doença prolongada e, no decurso da narrativa, acaba por também perder o pai, de quem cuidou nos seus últimos tempos com muito esmero. Um dos episódios mais especiais para mim deste livro passa-se precisamente no hospital, num dia em que Toru a acompanha numa visita ao pai e acaba por ficar umas horas sozinho a tomar conta dele. É um momento de incrível beleza e sensibilidade, que põe a nu a vulnerabilidade do ser humano e a capacidade de compaixão que conseguimos nutrir pelo próximo.
Há ainda uma outra personagem que precisa de destaque, Reiko, uma mulher que Naoko conhece no retiro psiquiátrico que faz e que se torna numa grande amiga. Toru acaba por também travar amizade com Reiko nas suas visitas a Naoko. Reiko tem, também ela, uma história complexa e que me causou muitos sentimentos contraditórios. Aliás, toda a personagem me transtornou em diferentes pontos do enredo. A dada altura, Reiko conta que está no retiro há vários anos para fugir da realidade. Antes de ir para lá, envolveu-se, ou deixou-se envolver, sexualmente com uma menor, sua aluna de piano. Reiko conta a história passo a passo, de como foi seduzida e manipulada por uma "menina com cara de anjo". Tive muita dificuldade em empatizar com esta personagem neste ponto e cheguei a sentir repulsa. Mais tarde, depois de Naoko se suicidar, Reiko vai ter com Toru e juntos acabam por fazer uma celebração à vida de Naoko onde acabam também por se envolver sexualmente. Também aqui não me liguei empaticamente ao momento: não sentia a necessidade de uma catarse sexual num momento por si só já tão emocionalmente intenso.
A morte e, em especial, o suicídio, é uma temática muito presente neste livro. Segundo a OCDE, o Japão é um dos países com maiores taxas de suicídio do mundo. Dados recentes (CNN) dizem-nos que em Outubro de 2020, o número de pessoas que morreu através do suicídio foi maior do que aqueles que perderam a vida por causa da pandemia de SARS-COV 2 - e os japoneses não tinham, até esta data, confinado. Vários estudos justificam esta taxa elevada por um agregado de fatores, sendo que no topo da pirâmide se relevam os fatores socioculturais, entre os quais o estigma associado aos problemas do foro psicológico. A saúde mental é um bem que deve ser preservado, trabalhado e cuidado, de forma pelo menos tão atenta como a saúde física. Os acompanhamentos psicológico e psiquiátrico adequados podem evitar perturbações mentais graves que para além de deixarem mazelas profundas na vida e forma de viver das pessoas, podem em última instância levá-las a um ponto de sofrimento psicológico intolerável que as deixa sem outra opção que não o suicídio. Precisamos, mais do que nunca, de adereçar estes assuntos sem vergonhas nem preconceitos. Todos somos humanos e, como tal, todos precisamos de ajuda em determinadas alturas: ajuda para nos conhecermos e entendermos melhor, para percebermos o que sentimos e porque sentimos, para refletirmos acerca do porquê de reagirmos de determinada forma e porque nos autossabotamos quando nada nos empurra para isso. Pedir ajuda é uma demonstração não de fragilidade, mas antes de coragem, pois acima de tudo é uma prova de que não se desistiu de si mesmo.
«(...) não estamos aqui para corrigir a deformidade, mas para aprendermos a viver com ela. (...) um dos nossos problemas é precisamente a incapacidade de reconhecer e aceitar essas deformidades. E que, tal como os outros seres humanos, temos todos um modo distinto de andar, de sentir, de pensar e de ver as coisas. Por mais que tentemos corrigi-las, dificilmente o conseguiremos.»
Apesar de não me ter sido sempre agradável, este romance suscitou em mim emoções fortíssimas, de diferentes valências. Assim, embora não se torne no meu livro favorito de Murakami, consigo perceber a magia que lhe é inerente e o porquê de o ter empurrado para uma vida de reputado e consagrado escritor. Todo o livro que nos causa emoções viscerais está a cumprir o seu propósito de forma sublime.
Avaliação: 3/5*
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