«O Retorno», por Dulce Maria Cardoso

 «O Retorno» foi o primeiro livro que li de Dulce Maria Cardoso, e é com manifesta alegria que penso "mais vale tarde, do que nunca"! O início desta história, contada pela voz de um narrador adolescente, leva-nos a uma Angola desterrada, banida, a pouco e pouco, dos antigos colonos brancos que, sem a opção de ficar na terra que tornaram sua, se exilaram nos mais diversos pontos do mundo. Rui, o nosso narrador, poderia ser considerado um retornado, mas não seria correcto dizê-lo, uma vez que era nascido e criado em Luanda; antes devemos tratá-lo como um tornado e relevar a beleza da metáfora: todo ele era um remoinho de emoções - de medo, de revolta, de tristeza -, no dia em que pôs os pés na afamada «Metrópole» que, afinal, se lhe afigurava tão suja e decadente. Perdendo o pai pelo caminho ainda em Luanda, e com a angústia de lhe desconhecer o destino, a família embarca, temerosamente, num voo para Lisboa. Assim que chegam, a Capital oferece a Rui, à sua irmã e à sua mãe um quarto num hotel de cinco estrelas, numa zona turística do Estoril, onde poderiam ficar por tempo indeterminado. Sublinho aqui o significado marcante que este paradoxo teve para mim: uma família chega sem nada (fora os corações cheios de angústia) e é depositada num Hotel luxuoso onde, apesar das aparências caridosas, é tratada com ligeireza e uma falta subliminar de empatia. Um contraste gritante.

Enquanto não vamos para a América, temos de aceitar este quarto e esta varanda de onde se vê o mar como a nossa casa. É a única maneira de seguir em diante. O pai dizia, o sol pode cegar-te mas não te importes, se lhe voltas as costas a tua sombra esconde o que procuras.

Não querendo cometer inconfidências sobre o desenvolvimento do enredo, não posso deixar de mencionar que é de uma despretensão e crueza que me agradam muitíssimo. Rui, um jovem que vê depositada nos seus ombros a pressão de ser o homem da família num país que, sendo o seu, lhe é estrangeiro, passa por momentos de autodescoberta e crescimento muito ricos. A sua revolta assume alguns picos muito interessantes - uma das minhas passagens favoritas é aquela em que narra um episódio passado numa aula de matemática na qual se sentiu agressivamente discriminado pela professora ("um dos retornados que responda"). Dulce Maria Cardoso não tem medo de fazer uso dos diferentes tipos de vocabulário nas alturas apropriadas para o efeito. Aprecio a naturalidade com que nos presenteia com um calão libertino que assenta que nem uma luva nos momentos distintos do enredo. Não é uma arte muito bem dominada pelos escritores portugueses - sinto que, muitas vezes, soa ou meio forçado, ou meio abusivo. Não foi o caso. Temos um adolescente (re)tornado, que não sabe do pai, a quem foi retirado o conforto de um lar, das suas coisas de sempre, dos seus amigos e, pior, de um futuro que se adivinhava se não garantidamente risonho, pelo menos mais simples e promissor. A este jovem são-lhe naturais os palavrões como uma expressão de uma raiva dirigida a toda uma nação. 


Fico fã desta escritora a quem voltarei, seguramente, em breve.


Avaliação: 4/5

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