«Crime e Castigo», por Fiódor Dostoiévski
Voltemos ao enredo deste fabuloso clássico. O protagonista desta trama, de seu nome Raskólnikov, é uma das personagens mais complexas e bem construídas que eu já tive a oportunidade de conhecer pela leitura. Ainda antes das primeiras cem páginas consegue matar duas pessoas de forma leviana e inexperiente e, mesmo matando uma pessoa a mais do que o previsto, fá-lo sem ponta de remorso. Justifica o seu crime com base na hediondez de carácter da "velha" e na necessidade que tem do dinheiro que ela possui, sendo que nem uma razão, nem outra, são justificações que verdadeiramente assentem na base do impulso homicida da personagem. Verificamos desde logo a ausência de necessidade de dinheiro quando, depois de cometido o delito, Raskólnikov não tem nem pressa de somar a quantia de dinheiro e objetos que roubou, nem destino para essa quantia. Atabalhoadamente, no meio de uma febre louca que o acompanha em grande parte da história, consegue arranjar um esconderijo para os bens que roubou, e quase mais não se lembra deles. A partir daí, começa o pesadelo de ter um segredo tão pesado e que se necessita de encobrir a todo o custo. O jovem, ex-estudante, mudou à primeira machadada e largou qualquer dignidade que tinha até então. A partir daí, mesmo com a chegada à cidade da sua mãe e irmã, Roskónikov revela-se uma pessoa cada vez mais desagradável e hostil, amargurada por um segredo que quer confessar não por culpa, mas por solidão.
Disse-o e atrapalhou-se, empalideceu: um sentimento recente e feio roçou-lhe a alma com um frio de morte; outra vez se tornou claro para ele que acabara de dizer mais uma grande mentira, que não só nunca mais teria tempo de falar de tudo, mas que nunca mais poderia, agora, falar com ninguém de coisa nenhuma. O efeito deste pensamento torturante era tão forte que, por um instante, se abstraiu por completo, se levantou e, sem olhar para ninguém, foi para a porta com a intenção de sair.
Conhecemos ainda várias personagens muito interessantes, como o fiel amigo Razumíkhin e Sónia, uma prostituta que se revela na mais pura das personagens deste livro e que acaba por seguir Roskólnikov até ao seu fim, num ato de amor desmedido pela dor do outro.
Há uma passagem que demonstra bem a dinâmica psicológica e tensa dos diálogos deste romance que não podia deixar de partilhar aqui. Trata-se de um momento em que um dos oficiais da polícia encosta Raskólnikov contra a parede, sem nunca chegar a detê-lo:
(...) Não me fugirá por força da lei da natureza, mesmo que tenha para onde fugir. Já viu uma borboleta diante de uma vela acesa? Pois é, é isso: é girar, girar à minha volta, como à volta de uma vela; ele desamará a liberdade, ficará pensativo, embaraçado, embaraçar-se-á a si mesmo como dentro de uma rede, inquietar-se-á mortalmente!... Mais ainda: ele próprio me há-de preparar qualquer coisinha matemática, como dois vezes dois - basta que eu lhe dê um intervalo um pouco mais longo... e irá sempre rodar à minha volta, num raio cada vez mais curto e - zás! Entra-me diretamente na boca, e eu vou engoli-lo, e é isso que me agrada de sobremaneira, ah-ah-ah! Não acredota?
Este romance deu-me a conhecer a vertente filosófica e psicológica que é tão (e bem!) reconhecida a Dostoiévski. Através de um sarcasmo e sentido de humor bem apurados, o autor enche as suas personagens de caracteres fortes e bem sustentados, o que dá sempre grande valor a qualquer enredo.
Os clássicos tornaram-se clássicos por algum motivo!
Fechei muito bem 2020 - no que toca a leituras, claro -, e estou preparada para este novo ano de leituras não muito planeadas.
Um feliz 2021 para todos!
Avaliação: 4/5*
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