«Autobiografia», por José Luís Peixoto
Se não tiver cuidado, acabo por marcar como importantes todas as páginas dos romances de José Luís Peixoto. Mas até isso seria injusto, uma vez que, muitas delas, mais do que importantes, são essenciais. Em 2020 cometi o erro de me poupar as obras deste autor que sempre foi como um regresso a casa para mim. A sua prosa poética conquistou o meu eu ainda adolescente, numa altura particularmente difícil para mim, na qual eu buscava nas palavras dos outros o sentido para a minha própria vida. José Luís Peixoto muitas vezes foi capaz de me dar esse conforto e, por isso, terá eternamente um lugar especial na minha estante e no meu coração.
Perante a fatalidade da morte, a herança que um homem foi capaz de juntar é a sua própria existência, termina o tempo, permanece o metal.
Li há pouco tempo «O Ano da Morte de Ricardo Reis», livro de Saramago, em que Ricardo Reis e o próprio Fernando Pessoa eram as personagens principais. Parece-me uma bonita forma de homenagear Saramago, esta de lhe retribuir uma obra em que o próprio é personagem do enredo. A homenagem não se fica pela atribuição de um carácter ficcional (com carácter biográfico) a Saramago, mas também se prende nas muitas referências às suas obras. Para quem conhece a obra do nosso Nobel da Literatura, este livro é um caça ao tesouro bem chorudo.
Este é um livro que inclui três Josés: o Saramago, o José criado para propósitos fictícios e o próprio escritor, José Luís Peixoto, que se reflete nos outros dois. Todos escritores, todos com as dores da pressão da escrita e da criatividade, todos com o fardo da vida corriqueira, mas com distintos retoques: os vícios destabilizadores, as mulheres conciliadoras, as famílias complexas.
Se quisesse, poderia descrever uma pedra e, no fundo, realmente, descrever-me a mim. (...) Contar-me a mim próprio através do outro e contar o outro através de mim próprio, eis a literatura.
Não há muito que possa revelar sobre o enredo em si, senão o facto de ser um constante espelhar de honestidade e nudez emocional. Quase sempre é difícil olhar para dentro de nós e ver exatamente o que lá está; por vezes, é mais fácil criar personagens e projetar nelas alguma coisa daquilo que somos. Mais fácil, mais bonito... e nem por isso menos sincero.
O inverno está mais quente?, não, o inverno está igual, foi a disposição que mudou, a pele não é indiferente ao querer, e a temperatura não está no ar, está na pele, como as imagens estão nos olhos.
Avaliação: 5/5*
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