«Paula», de Isabel Allende
Este texto contém spoilers (tanto quanto se podem fazê-los acerca de um texto autobiográfico).
O «Paula» chegou às minhas mãos de uma forma que considero inevitável. Numa consulta de psicologia que dava, a minha utente falou-me dele e de como era bonita aquela longa carta de Isabel Allende à sua filha, Paula, que morrera por complicações neurológicas que advieram de uma doença chamada Porfíria. Tomei nota mental do título do livro, e nessa mesma semana fui encontrá-lo, ao acaso, numa livraria de segunda mão em Aveiro. Aceitei a fatalidade desta leitura e trouxe-o comigo nesse dia.
Da escritora havia lido apenas «A Cidade dos Deuses Selvagens» há bastante tempo, livro que não me deslumbrou e do qual não guardo grandes recordações. Ainda assim, sempre guardei a intenção de voltar à autora chilena e senti uma grande vontade de fazê-lo com o «Paula». Fui alertada para o facto da escritora falar de alguns dos seus livros no decorrer deste manuscrito autobiográfico, mas isso não me demoveu da minha vontade. Assim, peguei no Paula.
«A minha vida faz-se ao contrário e a minha memória fixa-se com a escrita; o que não ponho em papel, o tempo apaga (...) A escrita é uma longa introspeção, é uma viagem até às cavernas mais obscuras da consciência, uma lenta meditação. Escrevo às apalpadelas no silêncio e pelo caminho descubro partículas de verdade, pequenos cristais que cabem na palma da mão e justificam a minha passagem por este mundo.»
A honestidade crua das palavras de Isabel marcaram-me profundamente. Ao longo do livro vamos acompanhando o progresso da doença de Paula, ao mesmo tempo que a mãe lhe (nos) vai contando muito acerca da sua própria vida: sobre o Chile, sobre as memórias que guarda dos avós, sobre a sua destemida mãe e o seu companheiro, o Tio Ramón. Fala-nos de episódios felizes, das suas memórias traumáticas, do golpe militar que fez com que se exilasse na Venezuela. Conta-nos os seus amores e desamores, nunca encobrindo os seus erros. A autora revela-se uma mulher obstinada, por vezes contraditória, que trava constantemente lutas entre os seus ideais e as suas ações. O nível de sinceridade desta escrita comoveu-me até às lágrimas. Senti o sofrimento desta mulher mesmo quando discordava das suas ações. Fiquei fascinada por este carácter tão humanamente imperfeito, tão intenso, tão aventureiro.
«Ando perdida, não sei quem sou, tento lembrar-me de quem era antes, mas apenas encontro disfarces, máscaras, imagens confusas de uma mulher que não reconheço. Sou a feminista que julgava ser, ou sou aquela jovem frívola que aparecia na televisão com plumas de avestruz no traseiro? A mãe obsessiva, a esposa infiel, a aventureira temerária ou a mulher cobarde? Sou aquela que albergava perseguidos políticos ou a que escapou porque não pôde suportar o medo?»
Este livro foi uma viagem. Vemos uma mãe perdida a navegar por todas as fases do luto: a negação, a negociação, a raiva, a depressão e, por fim, a tão esperada aceitação. Mas há muitos cabos das Tormentas a passar, como a dificuldade acrescida que é fazer o luto de alguém que ainda não partiu definitivamente, mas que de alguma forma já cá não está. Quando se apercebe que em Madrid já nada podem fazer pela sua filha - e que talvez não lhe tenham prestado o melhor dos cuidados -, Isabel pega em Paula e leva-a para a sua casa na Califórnia, onde a acomoda naquilo a que não posso chamar outra coisa que não um santuário- exatamente a mesma sala em que a sua nora havia dado à luz a sua neta, Andrea, apenas uns dias antes. Assim, Paula morreu no mesmo sítio onde Andrea nasceu. Tanto o acontecimento do nascimento da menina, como da partida de Paula, são dois momentos-chave embebidos numa ternura tão avassaladora que despertou emoções em mim que nem sabia que podia ter através da literatura. Em ambas as situações desenhamos a imagem mental de uma fusão da natureza perfeita: mãe e filha, numa só. Num caso, a entrar na vida terrena, no outro a entrar na vida espiritual. Seja lá o que isso for...
Há uma passagem do livro em que Isabel conta como uma mulher, pegando-lhe nas mãos, lhe fez três profecias: que haveria "um banho de sangue no seu país", que "o seu caminho era a escrita" e que um dos seus filhos, a Paula, ficaria "conhecida em toda a parte do mundo". Paula está na capa de muitos milhares de livros e ficou conhecida através deles. As três profecias cumpriram-se e Paula nunca morrerá, pois será sentida e recordada por todo o leitor deste livro, e viverá através daqueles que tocar.
Este livro salta diretamente para a estante dos meus favoritos por um motivo muito óbvio: fez-me sentir o que nunca antes senti ao ler. Arrasou-me. E a literatura quer-se assim, dilacerante.
Já cá tenho A Casa dos Espíritos. Mal posso esperar por continuar esta descoberta.
«Em última instância a única coisa que tenho é o amor que lhe dou.»
Avaliação: 5/5
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