«O Quarto de Giovanni», por James Baldwin
Hoje trago mais uma estreia pessoal: O Quarto de Giovanni foi o primeiro livro que li de James Baldwin. As expectativas eram altas - foi-me recomendado por um grande amigo -, mas não foram defraudadas. Baldwin é (os escritores serão sempre, não ficam para trás depois da morte) um autor norte-americano que viveu entre 1924 e 1987, tendo-se tornado numa figura incontornável nas lutas antirracistas e nas dos direitos pela igualdade de género e de orientação sexual. Apesar de não considerar a sexualidade fechada, assumia-se homossexual, à falta de uma palavra mais capaz de descrever algo tão íntimo.

«O Quarto de Giovanni» foi publicado no ano de 1956, é o segundo romance do autor e sublinha a sua audácia ao tratar de uma história de amor e intimidade entre dois homens brancos.
Pelas breves 190 páginas deste romance, seguimos a narrativa de David, que começa por nos dar alguma informação sobre o final da história, para depois voltar atrás no tempo e nos relatar os acontecimentos que desembocaram no já anunciado desfecho. Há um certo mistério nesta arte de desvendar o final logo no início: o leitor agarra-se à página com mais convicção para saber que voltas e peripécias originaram tal desfecho.
Ao fim das primeiras 20 páginas, David dá-nos conta da sua primeira experiência homossexual, ainda na adolescência, à qual se seguiu uma avalanche de emoções brilhantemente descritas, transmitidas de uma forma tão intensa e genuína que, por momentos, quase chegamos a senti-las:
"Mas, acima de tudo, tive medo. Ocorreu-me: «Joey é um rapaz!». Subitamente, senti o poder das suas coxas, dos seus braços, dos seus punhos semicerrados. O poder e a promessa e o mistério daquele corpo assustaram-me. Aquele corpo pareceu-me subitamente a entrada escura de uma caverna na qual seria torturado até à loucura, na qual perderia a minha virilidade. Justamente, eu queria conhecer aquele mistério e sentir aquele poder e ver aquela promessa a cumprir-se em mim. O suor nas minhas costas gelou. Fiquei cheio de vergonha. A própria cama era, na sua desordem, testemunha da vileza. (...) Uma caverna abriu-se-me na mente, negra, cheia de rumores, de sugestões, de histórias semiouvidas, semiesquecidas, semipercebidas, cheias de palavrões. Cri ver o meu futuro naquela caverna. Tive medo. Apeteceu-me chorar, chorar de vergonha, de terror, chorar por não perceber como é que aquilo me tinha acontecido, como e que aquilo tinha acontecido em mim."
O enredo propriamente dito tem lugar anos mais tarde, em Paris, quando David lá vive, no início da sua vida adulta. Por essa altura, o narrador tem uma namorada, Hella, a quem acaba por pedir em casamento de forma muito desapaixonada. Na sequência desse pedido, a jovem decide ir viajar sozinha por Espanha, para pensar na decisão e na relação. É na sua ausência que David conhece Giovanni, um barman italiano, por quem se sente automática e intensamente atraído. De um modo quase impercetível de tão espontâneo e incontrolável, David e Giovanni envolvem-se sexual e romanticamente, acabando por prolongar a paixão aos dias e meses seguintes, no quais partilharam o subterfúgio que era o quarto de Giovanni.
Tudo parecia decorrer dentro da normalidade da inconstância das paixões, sem grandes percalços nem preocupações, até David acordar para os seus medos, preconceitos e angústias. Chegado a este ponto, David vê-se na impossibilidade da completa entrega; os seus fantasmas aprisionam-no e constroem muros intransponíveis entre ele e o seu amante. Assolava-o um sentimento de não pertença grotesco e constante. Não se conseguia libertar da culpa e da vergonha do seu desejo, emoções que haviam estado inertes nele desde a sua adolescência. Estar com Giovanni era como caminhar para um abismo. A sua tormenta começou.
"A besta que Giovanni despertara em mim nunca mais adormeceria; mas um dia já não estaria com Giovanni. E daria então por mim, como todos os outros, a virar-me para seguir todo o tipo de rapazes em sabe Deus que tipo de ruelas escuras, para sabe Deus que lugares sombrios. Esta revelação terrível despertou em mim um ódio por Giovanni que era tão poderoso como o amor que lhe tinha e se alimentava das mesmas raízes."
Não falarei do desfecho do enredo - ainda que ele seja revelado logo nas primeiras páginas -, se não para dizer que é trágico e desolador.
A escrita de Baldwin não só me prendeu, como me emocionou em diferentes momentos. Sem grandes artefactos, consegue ser genuína e despida de pretensões. A mestria da simplicidade não é assim tão fácil de dominar, nem tão pouco se aprende: ou se tem, ou não se tem. Baldwin tinha. Sorte a nossa.
Mais do que um romance, este livro é um importante testemunho que nos aproxima de uma luta sobretudo interna que, podendo não ser a nossa, nos comove. Mostra-nos que a homofobia não é meramente extrínseca e que a repulsa autodirigida pode ser tão feroz como a de outrem.
Em 1956 este livro quebrou tabus, mas hoje em dia não é menos relevante. As lutas contra a discriminação e o preconceito acerca da orientação sexual, identidade de género e etnia continuam a ser travadas todos os dias. As melhorias existem e há que reconhecê-las, mas não podemos fechar os olhos à diferenciação, ao preconceito e à humilhação que milhões de pessoas ainda sofrem na pele todos os dias. Todos perdemos com isso - todos perdemos quando há pessoas que não encontram o seu lugar no mundo por não serem aceites - e não se aceitarem - tal e qual como são.
Serei uma sonhadora ao acreditar que, ao lermos, nos tornamos mais empáticos, mais atentos e conhecedores, e que, por isso, os livros podem mesmo salvar a humanidade?
Avaliação: 4/5
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