«Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola», por Maya Angelou
O género literário autobiográfico atrai-me pela genuinidade típica das suas obras. Por esperar autenticidade, sou muito exigente com esta categoria de livros - quando pego numa autobiografia, não espero uma narrativa superficial. Por isso e por muito mais, este livro encheu-me todas as medidas.
Ler este primeiro volume da autobiografia de Maya Angelou foi ambíguo num aspeto: se, por um lado, me deu a confirmação de que há pessoas excecionais (como a autora), também me mostrou que o sofrimento e a crueldade humanas não conhecem limites.
Neste relato, Angelou leva-nos pelas ruas da sua infância e adolescência, contando-nos os episódios que viveu enquanto estava com a sua avó numa pequena vila do sul, Stamps, e outros que experienciou mais tarde, quando se mudou com o seu irmão para São Francisco, para junto da sua mãe. Estas histórias são pautadas por um racismo cru, mas tão naturalmente transposto na escrita que, se não conhecêssemos o conceito de racismo, nem daríamos pelo carácter hediondo das situações. Angelou fala-nos de uma época em que o condenável era o não ser racista; mostrar respeito por um negro era desrespeitar os da própria raça - era uma traição.
Ir à Igreja naquela nuvem de cansaço? Em vez de irem para casa e descansarem aqueles ossos massacrados numa cama de penas? Veio-me à cabeça a ideia de que talvez o meu povo fosse uma raça de masoquistas e que não só tínhamos a sina de levar a vida mais pobre e dura de todas, mas que ainda por cima gostávamos dela assim.
Como se a discriminação permanente, a pobreza e o viver a infância sem pai nem mãe não fossem suficientes, Maya Angelou teve a infelicidade de ser violada pelo seu padrasto, numa idade tão tenra que nem soube, na altura, o que significava o que acabara de lhe acontecer. Na sua mente, aquele «segredo» era algo para o qual tinha contribuído e pelo qual deveria ser também castigada. Quando as crianças não sabem o que lhes está a acontecer, atribuem-lhes significados mediante aquilo que observam.
Conhecemos, através das palavras da autora, um orgulho firme no seu povo e uma crescente revolta acerca do modo como a discriminação molda toda uma cultura e subjuga aqueles que nasceram diferentes apenas por terem uma cor diferente.
Era horrível ser negra e não ter controlo nenhum sobre a minha vida. Era brutal ser jovem e já me terem domado para ficar sossegadinha a ouvir as acusações feitas contra a minha cor, sem hipótese de me defender. Devíamos estar mortos, todos nós. Pensei que gostaria de nos ver mortos, a todos, empilhados uns em cima dos outros. Uma pirâmide de carne com os brancos no fundo, a servir de base larga, depois os índios com os seus disparatados machados, tendas, cabanas de peles de animais e tratados, os negros com as suas esfregonas, receitas, sacas de algodão e espirituais a saírem-lhes pela boca fora. As crianças holandesas deviam, todas elas, tropeçar nas suas socas de madeira e partir o pescoço. Os franceses deviam morrer sufocados com a Compra da Luisiana (1803), enquanto todos os chineses, com as suas estúpidas tranças, eram comidos por bichos-da-seda. Enquanto espécie, éramos uma abominação. Todos nós.
Conheço há muito uma frase parecida com o título deste livro, que ouvi numa canção durante a minha adolescência e me fez pensar muito. A frase diz: "You but a big bird in a small cage and he'll sing you a song", ou seja, "Se puseres um grande pássaro numa gaiola pequena, ele cantar-te-á uma canção". Sempre gostei desta frase porque sempre julguei entender a sua mensagem. Há pessoas que prosperam mesmo quando as tentam oprimir, ou aprisionar, da mesma forma que um pássaro produz um cântico bonito quando o impedem de viver livremente, como a natureza demanda. Esta ideia foi-me sempre confortável - que, não obstante a opressão, a criatividade e, acima de tudo, a liberdade, cantam mais alto. Depois de ler este livro, confirmo a minha tese de adolescência, e acho que, hoje, graças a Angelou, sei ainda melhor porque canta o pássaro na gaiola. Obrigada.
O facto de uma mulher negra adulta emergir com uma personalidade formidável é muitas vezes recebido com assombro, repulsa e inclusive beligerância. Raramente é aceite como um resultado inevitável da luta ganha por sobreviventes e merece respeito, senão mesmo aceitação entusiasta.
Avaliação: 5/5
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