«Nem Todas As Baleias Voam», por Afonso Cruz

Não me lembro de ter tido um dia na minha vida em que não ouvisse música por opção. E quando digo 'por opção', estou a referir-me precisamente ao ato de escolher ouvir música por querer e precisar, e não somente àquelas situações em que vamos no carro com o rádio ligado. Durante muitos anos não conseguia adormecer senão com a música a entrar-me pelos ouvidos e a preencher-me os primeiros sonhos da noite. Tenho uma relação particular com a música. Digo particular pois embora não perceba um chavelho de escalas musicais, ritmos e harmonias, a música fala comigo de uma forma que nem o mais bem intencionado e conhecedor de palavras é capaz. A música é a minha memória e, muitas vezes, a minha perceção (como quem diz, o meu cenário). Daí que Afonso Cruz me tenha conquistado, desde logo, com esta ideia magnífica que é a de ganhar guerras através da música:

Este facto parece-me uma das ideias mais fantásticas da Humanidade: pretender conquistar o mundo através da música, em vez de, por exemplo, fazer explodir Hiroxima ou invadir o Iraque. A música tem um enorme poder transformador, quase imediato. É uma das poucas artes, senão a única, capaz de nos fazer mexer o corpo, de nos pôr a dançar, de provocar a catarse ou o êxtase. E não tem sequer de ser música de qualidade para o conseguir. Uma pintura de Van Gogh não nos põe a dançar, mas uma canção, por pior que seja, é bem capaz de o fazer. O programa americano pode ter falhado - o Muro só viria a cair muitos anos depois -, mas a esperança que esteve na sua base, ainda que utópica, não deixa de ser maravilhosa: a possibilidade de uma guerra poder terminar num baile em vez da explosão de bomba de hidrogénio.

Enredo à parte, preciso muito de escrever o quanto me comoveu a ideia da caixinha de sapatos e o quanto refleti sobre isso. Caberá a nossa vida numa caixa de sapatos? Seríamos capazes de entregar a alguém uma caixa de sapatos e dizer-lhe: "toma, aqui dentro tens o significado da minha vida"? Creio que só uma criança conseguiria ser tão etérea.

Não me vou alongar sobre as (tantas) coisas que me tocaram neste livro. Gostava apenas de realçar o quão simples é darmos cara àquilo que sentimos ou enviar uma mensagem através de uma melodia, mesmo quando não sofremos de sinestesia. Basta sintonizarmo-nos connosco, o que, sendo simples, não tem nada de fácil.

"Papá,
Magoamo-nos uns aos outros. Percebo isso. Deixamos marcas, cicatrizes. Por isso é que o senhor Dresner coxeia. Sei que não é uma ferida real, a cabeça do amigo dele apenas lhe tocou no pé. Mas ele nunca mais o esqueceu. E nunca mais parou de coxear. Isso fez sentido para mim, porque também desejei algo de parecido (...).
Se morrer antes de ti - pode acontecer -, gostava muito que coxeasses por mim."


[As pessoas acontecem-nos e depois nunca mais somos os mesmos.]

Comentários

  1. Que bonito! Escreves tão bem! Agora fiquei com muita vontade de ler!

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