«O Avesso da Pele», por Jeferson Tenório

Terminei "O Avesso da Pele" escassos dias antes do seu autor, Jeferson Tenório, ser consagrado com o Prémio Jabuti. E que merecida me parece esta vitória. Que lindo é este livro! Merece todas as críticas elogiosas que desde abril invadiram o bookstagram e outros domínios. É uma ode à reflexão acerca do racismo, do luto e do amor, mas sobretudo daquilo que nos torna pessoas munidas de emoções, sentimentos e ligações. É, então, sobre o avesso, aquele "lugar onde estão os afetos". Deixei-me tocar pelas palavras de Tenório com uma delicadeza que me fez saborear este livro como quem ouve a mais comovente bossa nova. O sentimento é o mesmo e creio que é assim que o recordarei. 

Através de uma incursão pela vida íntima dos seus progenitores, o narrador dirige-se a seu pai, recentemente falecido, tentando tirar da dor da perda um sentido para a ausência.

"Acho que inventei uma memória sobre você sem a distância e a maturidade necessárias. Sei disso, mas a minha ingenuidade é tudo o que tenho. Esta história é ainda a história de uma ferida aberta. É uma história para me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser."

Reflito muitas vezes acerca da importância que as narrativas autobiográficas assumem na nossa vida. Ajudam-nos a ressignificar eventos que, de outra forma, se assumiriam como dores, ausências ou traumas. Permitem-nos encontrar sentido nos desastres que nos acontecem, de forma a que das cinzas renasça uma fénix cada vez mais resiliente e inteira. Não ter narrativas de vida é ser-se fragmentado.

"Vocês se transformaram numa ilha. Você aceitou facilmente que o amor não era querer que a outra pessoa fosse feliz, mas que ela se apagasse por você, se anulasse por você (...). Aceitou porque, talvez, você nunca tenha tido um afeto tão amplo. Nunca tinha tido alguém que te aceitasse por inteiro como minha mãe aceitou, sem restrições, sem limites. Sua carência o deixava vulnerável, porque até ali sua vida havia sido um desfile de abismos, um grande catálogo de perdas.» 

Nunca saberei o que é ter pele escura e de tudo o que isso comporta. Tento, todos os dias e cada vez mais, não ter a pretensão de conseguir pôr-me no lugar do outro ao ponto de saber tudo o que a cor da pele encerra em si mesma. Sei que fracasso de cada vez que faço exercícios de faz-de-conta mentais na tentativa de sentir aquilo que será sempre inimaginável para alguém com a minha cor. Pratico a minha empatia através do reconhecimento desta ignorância. Não quero cair na "armadilha" do não-racismo que o autor menciona no livro. Tento escutar, tento ver, tento a justiça. Fracassarei, repetidamente, mas tentarei sempre, porque tentar é o máximo que posso fazer para diminuir este fosso sociocultural que se faz sentir como distância afetiva. 

Ler este livro, que é também em certa medida um testemunho, aproximou-me desta realidade tão diferente da minha, comovendo-me e fazendo-me questionar-me, duvidar, refletir. E, por isso, só tenho a agradecer esta partilha tão desnuda, tão emotiva, tão verdadeira. Adorei e tocou-me muito. Obrigada e parabéns, Jeferson Tenório. <3

«É necessário preservar o avesso (...). Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são os afetos que nos mantêm vivos."

Avaliação: 5/5*

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