"O Ano da Morte de Ricardo Reis", por José Saramago

"O Ano da Morte de Ricardo Reis" é um romance de José Saramago, lançado em 1984, que nos narra a história do último ano de vida de Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Depois de dezasseis anos emigrado no Brasil, Ricardo Reis, nosso conhecido como poeta, mas médico de profissão, regressa à sua pátria depois de saber da morte de Fernando Pessoa. Se era esse o motivo que de verdade o incentivou a regressar, ou não, nunca chegamos a compreender na totalidade. Com uma personalidade algo taciturna e reservada, Ricardo Reis chega a uma Lisboa mudada pelo tempo, cheia de pessoas, mas sem ninguém à sua espera. 


Nos primeiros tempos do seu regresso, o nosso Poeta procura abrigo e comodidades num hotel, intitulado Hotel Bragança, onde é recebido com uma pompa e circunstância que, com o passar do tempo, se vai transformando em bisbilhotice e escárnio popular - daqueles que se sentem, mas não se veem. É nesse estabelecimento que conhece as duas mulheres que se vêm a tornar nas suas paixões - uma mais carnal, a outra mais platónica-, Lídia, a criada de Hotel, e Marcenda, uma jovem Conimbricense, cujo braço esquerdo deixou de responder após a morte de sua mãe. É também no Hotel Bragança que Ricardo Reis é pela primeira vez visitado por Fernando Pessoa - ou o que resta do falecido que, por uns meses, ainda paira no mundo dos vivos. Nestas visitas, os dois poetas - um que é parte do outro e o próprio do outro -, discutem os dilemas da vida, da morte, de Lisboa e de Espanha. Discutem revoluções políticas e do coração, temas pragmáticos e alguns emocionais, em conversas companheiras que dão alento e sossegam a inquietude de quem se sente tão só.

«(...) quando se espera o sono no silêncio de um quarto ainda alheio, ouvindo chover na rua, tomam as coisas a sua verdadeira dimensão, são todas grandes, graves, pesadas, enganadora é sim a luz do dia, faz da vida uma sombra apenas recortada, só a noite é lúcida, porém o sono vence, talvez para nosso sossego e descanso, paz à alma dos vivos.»

Passados uns meses, Ricardo Reis decide-se, por fim, a procurar casa própria e até gabinete para exercer a sua profissão de médico. Mas a vida vai-lhe passando cada vez mais ao lado. Tirando os seus encontros com Lídia e os desencontros com Marcenda, nada dentro do heterónimo lhe dá ânimo e os sentimentos de solidão e de vazio vão crescendo na alma do Poeta. Quem testemunha isso é Fernando Pessoa, que cada vez menos pertence ao mundo dos vivos. Juntos partilham o desassossego de quem já não é, nem se sente. 

O livro termina de uma forma muito bonita: Fernando Pessoa e seu heterónimo Ricardo Reis regressam juntos, lado a lado, ao além dos que apenas habitam a memória dos que ainda vivem - ou pelo menos sobrevivem -, no lado de cá.

Uma belíssima homenagem do nosso Nobel da literatura a um dos maiores - se não o maior - poetas portugueses, Fernando Pessoa. Ler Saramago é sempre uma experiência enriquecedora e prazerosa, que me enche de orgulho na nossa língua portuguesa e na nossa cultura. Para que estas surpresas agradáveis se mantenham ainda por muito tempo, tenho que regrar as minhas leituras de Saramago, lê-lo com calma e proveito, para prolongar estas dádivas que ele nos deixou.


«Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.»


Avaliação: 4/5*



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